O verdadeiro assassino de Lampião e outras descobertas

Uma das maiores autoridades em assuntos de cangaço, o historiador Frederico Pernambucano de Mello foi pego de surpresa ao ouvir a voz grave no telefone: “Frederico, há muito tempo que você tenta falar comigo. Estou indo a Pedra Velha, em Delmiro Gouveia [Alagoas], me despedir da família. Estarei à disposição. Tenho fatos que nunca contei a ninguém e que não quero levar para o túmulo”. Era dezembro de 2003. O historiador foi ao encontro do sujeito em Pedra Velha e gravou horas e horas de entrevista. No mês seguinte o sujeito morre. Havia sido diagnosticado com aneurisma inoperável. Seu nome é Sebastião Vieira Sandes, o verdadeiro assassino de Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião.

Frederico Pernambucano de Mello com o soldado Sandes. Um encontro em  Pedra Velha, Alagoas, provocou a reviravolta no caso de Lampião

Frederico Pernambucano de Mello com o soldado Sandes. Um encontro em  Pedra Velha, Alagoas, provocou a reviravolta no caso de Lampião

“Lampião não morreu em combate. E quem atirou nele não foi o Honorato, como divulgaram os jornais da época. Foi o Sandes, com apenas um tiro que acertou a região umbilical. Depois desse disparo que o confronto de 20 minutos entre os cangaceiros e a Força Volante de Alagoas começa”, conta Frederico em entrevista ao VIVER. “Quem também corta a cabeça de Lampião é o Sandes. Ele encontra o corpo com as vísceras de fora. A bala triscou o punhal da cintura e rasgou o abdômen de Lampião. Com base no relato do Sandes fui atrás de um perito que analisou o punhal de Lampião e pudemos comprovar as informações”.

Frederico é o autor de “Apagando Lampião – Vida e Morte do Rei do Cangaço” (Global Editora), biografia lançada no início de dezembro, 80 anos depois da morte de Virgulino. A obra, que renova a historiografia do cangaço ao desatar vários nós da trajetória daquele que é um dos personagens mais emblemáticos da história do país, já caminha para uma segunda tiragem, o que demonstra que o tema ainda desperta a curiosidade da população.

Em sua pesquisa que durou décadas, Frederico reuniu raro material de documentos escritos, fotos inéditas e entrevistas orais, tudo para trazer detalhes, resgatar personagens até então pouco abordados, comprovar fatos, contextualizar situações. Segundo o autor, a biografia não propôs a reproduzir o que já foi dito. Nesse caso, o livro inova em quatro questões: a origem da intriga da família de Lampião com a de Saturnino Pereira, a fuga para Bahia, a ida para Minas Gerais e as circunstâncias da morte de Virgulino.

“O cangaço é a mitologia mais forte que o Brasil possui. Tem uma base real, concreta, e é recente, está quase ao alcance da mão. É das manifestações que forma uma cultura, com dança, vestimenta, técnicas de batalha. Tem a força do faroeste americano”, comenta o historiador, autor, dentre outros livros, de “Guerreiros do Sol – violência e banditismo no Nordeste do Brasil”, “Estrelas de couro – a estética do cangaço” e “A guerra total de Canudos”.

Sobre o Sebastião Vieira Sandes, personagem dessa história, Frederico o descreve como uma figura curiosa. “Coiteiro, ficou muito próximo de Lampião e Maria Bonita, que o tinham quase como afilhado e o chamavam de ‘Galeguinho’. Mas em 1937 ele acabou preso. Normalmente os coiteiros capturados acabavam mortos. Mas um fazendeiro interviu na situação. Para continuar vivo, Sandes se viu obrigado a ajudar a Força Volante. Foi amarrado com a tropa até onde o bando estava escondido. E chegando lá, recebeu a ordem para atirar.”

Nesta entrevista, o autor detalha a construção dessa história: 

Por que a identidade do verdadeiro assassino levou tanto tempo para ser revelada?
Sandes tinha 22 anos quando matou Lampião. Ouviu o conselho dos mais experientes de não cair na besteira de dizer que foi ele e assim ficou calado. Se sabia que haveria vingança. O Honorato, que afirmou para os jornais que de fato foi ele o autor do disparo em Lampião, depois acabou morto, em 1962. Então o Sandes preferiu se preservar. Nas minhas entrevistas com coronéis, coiteiros, cheguei a informação de que talvez o Honorato não tenha sido o autor do disparo. Descobrir que além do Honorato tinham outros homens na função de guarda-costas do aspirante Francisco Ferreira de Melo. Soube do paradeiro do Sebastião em 1978, em Maceió. Tentei vários anos uma conversa com ele. Mas os parentes sempre diziam que ele não quer falar sobre o assunto, porque era sobrinho da baronesa de Água Branca e que era por isso era melhor ter esquecido a história do cangaço. Depois Sandes foi pra São Paulo. Tentei novamente falar com ele. O que me disseram é que ela mandou avisar que se um dia vier a tocar no assunto, eu seria a pessoa a quem ele revelaria tudo que sabe. Em 2003 veio o telefonema.

Que outra novidade o livro apresenta sobre a história de Lampião?

A relação de Lampião com Minas Gerais. Lampião era profundamente cerebral. Não andava à toa. investiga seus percursos, cheguei a fatos de Minas. Passei um mês lá ouvindo pessoas de muita idade. Descobri o motivo de sua ida a Minas. Um coronel que havia perdido o poder para outra família, estava querendo recuperar o prestígio, então entrou em contato com Lampião. Atraiu ele pra cidade para desgastar seu oponente político. Ia fechar os olhos para as atrocidades do bando. E Lampião estava interessado no ouro. Ele queria conseguir mais armamentos.

Como o bando de Lampião conseguiu durar tanto tempo?

O bando de Lampião movimentou muito dinheiro. Tinha ouro até na coleira dos cachorros. Era uma figura muito inteligente, estratégica, política, desenvolveu técnicas de ataque. A gente brinca que o Lampião criou o Cangaço S.A. Existiam pelo nordeste 10 subgrupos subordinados a Lampião, mas com relativa autonomia. Era o que podemos chamar de franquias.

A que se deve o surgimento do cangaço?

O cangaço nasceu com a colonização. A origem do cangaço está nos levantes indígenas, nos quilombos e nas revoltas sociais, como Canudos. O cangaço é irmão desses três levantes, mas com arma na mão. Infelizmente o tema sempre foi pouco explorado pela academia. Quando comecei a pesquisar o cangaço os professores consideravam um tema de página policial. Enquanto isso, entre 1951 e 1958, Portinari pintava sua famosa série “Cangaceiros”. Essas pinturas estão espalhadas pelo mundo. Pra você ter ideia, o filme mais premiado fora do Brasil é o “Cangaceiros”, de 1963, do Lima Barreto. O tema foi muito discutido na Europa, foi interpretado de modo ideologizado Aparece no filme “Deus e o Diabo na Terra do Som”, de Glauber Rocha. Aparece também na literatura, em livros de José Lins do Rêgo, Graciliano Ramos, Jorge Amado e Rachel de Queiroz.

Coloborou Cinthia Lopes (editora do Viver)