Feito histórico de atleta brasileira do tênis de mesa derruba mito capacitista

 

Por Valmir de Souza (*)

Em sua página 12, a cartilha “Combata o capacitismo”, lançada em 2023 pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) em parceria com o Ministério da Saúde e com o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC), é enfática ao ensinar: “Não inferiorize a pessoa em função da deficiência. Ela pode, de fato, ter mais habilidades do que você”.

Nos Jogos Olímpicos de Paris, a mesatenista catarinense Bruna Alexandre, de 29 anos, provou que o conceito expressado no documento é totalmente verdadeiro. Afinal, quantos dos leitores deste artigo, que se consideram em condições físicas normais, conseguiriam se classificar para uma competição que reúne os melhores atletas do mundo no tênis de mesa?

Certamente, bem poucos.

Mas Bruna conseguiu e jogou contra os demais virtuosos tendo apenas um dos braços.

No dia 5 de agosto ela fez história ao participar, ao lado de Giulia Takahashi, do duelo entre Brasil e Coreia do Sul na disputa por equipes. Ao fazer isso, a atleta se tornou a primeira brasileira a disputar tanto os Jogos Olímpicos quanto os Paralímpicos.

Independentemente dos resultados de suas partidas, a simples presença de uma pessoa com esta característica em um evento que se gaba de reunir a elite dos seres humanos em torno do lema “Citius, altius, fortius”, traduzida para “os mais rápidos, os mais altos e os mais fortes”, já é uma grande vitória na luta contra o capacitismo no Brasil.

Dados da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos do MDHC captados através do canal de denúncias do Disque 100 informam que foram registradas 394.482 violações contra as pessoas com deficiência no país em 2023. Este volume representa um crescimento de 50% na comparação com o ano anterior. O estudo revela que entre os tipos de denúncias mais recorrentes se destacam a negligência à integridade física (47 mil denúncias), a exposição de riscos à saúde (43 mil), os maus tratos (37 mil) e as torturas psíquicas (34 mil).

Em uma nota publicada pela Agência GOV, a secretária nacional dos direitos da pessoa com Deficiência do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC), Anna Paula Feminella, explica que as violências sofridas têm origem, em sua maioria, no preconceito de que a pessoa que está fora dos padrões ideais é anormal ou inferior.

Bruna, que teve o braço direito amputado por causa de uma trombose causada por uma injeção mal aplicada com apenas seis meses de idade, é a prova de que inferior é a mente de quem pensa desta forma. Afinal, além da modalidade que a levou às Olímpiadas, ela também foi praticante de esportes com um grau de dificuldade tão elevado quanto o skate e o futsal.

Em sua especialidade, ela foi bicampeã brasileira, contribuiu com a classificação da equipe aos Jogos Olímpicos Paris 2024 com a prata no Pan-Americano da modalidade (inclusive com uma vitória decisiva sobre Porto Rico) e garantiu o bronze nos Jogos Pan-Americanos 2023. Ela está entre as melhores do Brasil no olímpico e, também, no paralímpico.

Mas a luta contra o capacitismo é tão difícil que até vitórias como a alcançada por Bruna podem, se não houver educação e cuidado, se tornar combustível para esta prática nociva. Por causa disso, a cartilha da Fiocruz oferece outro ensinamento em sua página 12: “Elimine as falas capacitistas: Ela joga tão bem, pena que tem deficiência”.

Esse tipo de declaração que tem a intenção de demonstrar simpatia é muito usada não só no ambiente esportivo. Fora dele, as pessoas costumam usar frases como: “Ele tem este problema (para se referir ao autismo, por exemplo) mas é bonzinho, ou é calminho, ou é inteligente etc”.

Por melhor que seja a vontade da pessoa que usa este tipo de manifestação, o fato é que elas demonstram um forte preconceito e não colaboram em nada para a inclusão. Conforme também ensina a cartilha citada em sua página 6, as pessoas com deficiência são pessoas diversas, como quaisquer outras e não precisam ter suas características positivas sendo ressaltadas apenas como contraponto à sua diferença física ou mental para as demais.

Este tipo de alerta é importante para que possamos fazer uma analogia com o jogo de tênis de mesa para lembrar que, a participação da Bruna nas Olímpiadas foi sim uma grande cortada sem defesa para o time dos capacitistas, mas ela equivale apenas à conquista de um set neste jogo.

A realidade é que a partida não acaba aí e vai exigir ainda muito esforço da sociedade como um todo para chegar à vitória final.

(*) Valmir de Souza é COO da Biomob, startup especializada em soluções de acessibilidade e consultoria para projetos sociais

 

Valmir de Souza, COO da Biomob