Governo federal quer lançar canal único para denúncias de ‘excessos’ em sala de aula

G1

O governo federal pretende lançar, até o início do próximo ano letivo, um canal unificado para denúncias de pais e alunos ligadas ao ambiente escolar. A informação foi divulgada pelo ministro da Educação, Abraham Weintraub, e pela ministra dos Direitos Humanos, Damares Alves, durante a celebração dos 30 anos da Convenção Sobre os Direitos das Crianças da ONU.

A ideia do governo é usar o Disque 100 – que já existe e concentra denúncias de ofensa a direitos humanos –, além da internet e de um aplicativo. O custo da medida não foi divulgado.

Em entrevista coletiva, Weintraub disse que os estados e municípios têm a obrigação de “prover um ambiente construtivo para as crianças”, e que espera que isso aconteça em “mais de 90%” das salas de aula. Quando não ocorrer, segundo ele, o canal do MEC estará disponível.

O ministro afirmou ainda que os governos que não cumprirem a determinação – ou seja, não promoverem o ambiente construtivo – poderão ser penalizados com a perda de verba federal. Nesse trecho da entrevista, ele não deixou claro se fazia referência a estados, municípios ou às escolas denunciadas.

“Quem não performar bem, quem não cuidar do ambiente adequado dentro das escolas vai ser prejudicado no envio de recursos do governo federal”, declarou.

Em setembro, o MEC já tinha enviado um ofício a todas as escolas públicas do país, com orientações visando “à melhora do ambiente escolar”. A lista incluiu cuidados com o que o governo chama de “doutrinação” e “exposição à propaganda político-partidária”.

O ministério nunca divulgou dados estatísticos sobre a recorrência desses casos dentro de sala de aula. Os critérios para enquadrar um episódio como doutrinação também não foram divulgados.

Padrão internacional, diz Damares

Segundo a ministra Damares Alves, o canal de denúncias vai garantir que a escola não ensine “nada que atente contra a moral, a religião e a ética da família”. Esses termos, diz ela, estariam no Pacto de San José da Costa Rica, um tratado internacional do qual o Brasil é signatário.

“A família precisa ser ouvida. E o que nós estamos querendo trabalhar no Brasil, uma parceria de paz, uma parceria de verdade, escola e família. A família sendo consultada quando precisar ser consultada, mas a família também não delegando suas responsabilidades”, diz Damares.

O Pacto de San José, também chamado Convenção Americana dos Direitos Humanos, foi elaborado em 1969 e entrou em vigor em 1978. O Brasil só ratificou as regras em 1992 e, atualmente, elas têm o mesmo status jurídico da Constituição Federal.

O texto não fala sobre “ética da família”, e nem orienta políticas a serem adotadas dentro da escola. No artigo sobre liberdade de consciência e religião, a convenção diz que:

  • “Ninguém pode ser submetido a medidas restritivas que possam limitar sua liberdade de conservar sua religião ou suas crenças, ou de mudar de religião ou de crenças.”
  • “A liberdade de manifestar a própria religião e as próprias crenças está sujeita apenas às limitações previstas em lei e que se façam necessárias para proteger a segurança, a ordem, a saúde ou a moral públicas ou os direitos e as liberdades das demais pessoas.”
  • “Os pais e, quando for o caso, os tutores, têm direito a que seus filhos e pupilos recebam a educação religiosa e moral que esteja de acordo com suas próprias convicções.”

‘Bode na sala’

A ideia de um canal único, em nível federal, para receber denúncias de divergências dentro das escolas não é consenso entre especialistas. A presidente-executiva do Todos Pela Educação, Priscila Cruz, diz que a medida rebaixa, simultaneamente, o papel do professor e do diretor.

“É natural que conflitos aconteçam em qualquer tipo de espaço coletivo. Isso tem que ser resolvido no âmbito da gestão escolar, é o diretor ou diretora da escola que precisa resolver, atuar nesse tipo de situação”, afirma.

Segundo Priscila, esse tipo de anúncio recorrente na gestão atual do MEC – ligado aos costumes e à ética familiar – é uma forma de “colocar o bode na sala”, ou seja, criar um problema artificial para evitar a discussão dos temas que realmente importam.

“É como se a gente colocasse um bode na sala para dizer ‘olha só, o problema da escola pública no Brasil é que os professores estão com opinião diferente da opinião das famílias’. Esse não é o problema da educação brasileira”, diz Priscila.

“O problema da educação brasileira é muito mais complexo, é muito mais difícil de ser solucionado. A população não pode entrar nesse tipo de conversa achando que o governo está resolvendo um problema que, na verdade, não é o problema mais importante e real da nossa sociedade, das escolas brasileiras.”